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  • Foto do escritorEloi Zanetti

Viola, sanfona e cantoria


“Eu queria tocar violão, mas não tinha dinheiro para comprar um, então fiz este e aprendi”.

De um morador de Alagoa – MG




As vozes da ladainha soam meio esganiçadas, lamentosas, melancólicas; acompanham o ritmo das violas, sanfonas, caixas, chocalhos, pandeiros e cavaquinhos - é o canto da música mineira nas rezas de São Gonçalo e Reis. O grupo é formado por seis vozes e a cantoria é conduzida pelo mestre e contramestre e respondida na hora certa e em falsete pelo corte, contracorte, tala e contratala e, para animar, a presença dos palhaços e mascarados.


Nas festas de Reis não pode faltar o alferes, encarregado de passar a bandeira para alguém da casa visitada. O grupo chega e pede licença cantando: “Senhor e dono da casa, vai chegando a folia / Vem beijar a nossa bandeira e escutar a cantoria ...”. A família já os espera; muitas vezes com café passado na hora em coador de pano, bolo de fubá e pão de queijo. Se é na hora do almoço ou do jantar, a comida está sobre a chapa quente de um fogão de lenha. Os mais velhos observam sérios, constritos e cheios de fé o ritual da folia –que é como esses grupos musicais são chamadas aqui no Sul de Minas. Já os mais jovens espalham-se pelo terreiro, bebem cervejas em lata e exibem braços tatuados e cabelos à la Neymar. A TV e o convívio com os costumes das cidades maiores vão enterrando pouco a pouco tradições de origens medievais.


Cada localidade tem o seu grupo; os músicos começam a caminhada por volta do Natal e vão de casa em casa; fazem o ritual e recebem as doações em forma de dinheiro, porcos, vacas, galinhas e outros tipos de comida – tudo vai para a grande festa, organizada pela família festeira do ano. No dia 6 de janeiro reproduz-se de forma metafórica a visita dos Três Reis Magos ao menino Jesus na manjedoura: “Três Reis aqui chegaram ao entrarem porta adentro; eles vieram anunciando como foi o nascimento. ”Depois dos rituais a mesa farta é posta. Come-se à vontade.


Olho em volta e quase não vejo crianças. Casais jovens não querem ter filhos e elas, as crianças, com seus alvoroços, gritinhos e brincadeiras começam a fazer falta nas festas populares. Assim como as crianças, cães vadios perambulando em meio ao povo não devem faltar nestas manifestações. Festa popular em pequenas localidades sem crianças e sem cachorros é uma festa triste. O tom melancólico da cantoria me emociona - disfarço meu sentimento. Não lamento por mim, mas pelo sofrido povo que busca na fé e na música um bálsamo para suas vidas. Observo seus rostos e vejo rugas e peles ressecadas. O sol da lida diária com a lavoura e com o gado é inclemente. É muito esforço para tão pouca paga.


O povo laborioso tem uma regra – primeiro a obrigação, depois a diversão. O mineiro segue à risca o ditado cristão substine et abstine,que traduzido quer dizer algo como: suporte com paciência as dificuldades da vida, só espere por tempos melhores para quando chegar aos céus ao lado do Criador e não faça tentativas para modificar esse estado das coisas, porque isso nos convém – como diziam o clero e os senhores feudais. Dos brasileiros, creio ser o mineiro o que mais cultiva as antigas tradições ibéricas – parte da fala portuguesa antiga ainda persiste em algumas regiões e é caso de estudo de linguistas brasileiros e portugueses. Aqui cada bairro, cada rincão, cada cidadezinha é como se fosse um principado com suas disputas políticas de poder e mando. A unificação mineira se faz pela fé e pela música. Alguns dizem: também pelos tipos de queijos, doces e cachaças.


A música está entranhada na alma do povo mineiro assim como seus minérios estão nos seus vales e montanhas. Em cada casa que a gente vai sempre há um violão ou uma sanfona ao alcance de um tocador. Ao marcarem uma festa, imediatamente aparecem violeiros, sanfoneiros e cantores para animá-la. Quase todo mundo sabe algumas letras de cor. O aprendizado começa na infância; já vi crianças pequenas mal suportando o peso de uma sanfona e tentando fazer acompanhamento. Sem escolas para a iniciação musical, todos aprendem de ouvido, um observando o outro, trocando informações sobre a posição das mãos, ritmo, afinação dos instrumentos e melhorando alguns trechos que já sabem. O sujeito pode ser um xucro, um bruto nos trabalhos da roça, mas quando pega um instrumento musical das suas mãos saem melodias de pura doçura.


Motivos é que não faltam para as festas, principalmente os religiosos e os de pedidos ou de graças já recebidas. Os festejos vão acontecendo durante o ano e boca a boca é que faz a divulgação. Músicos de uma localidade tocam em outras e vice-versa. Não existe cachê ou qualquer forma de pagamento – toca-se pelo prazer de tocar e de participar. Normalmente nesses encontros há muita extravagância de comida; todos colaboram e o cardápio é quase sempre o mesmo: arroz, tutu de feijão macarrão e carnes de porco e de galinha. Quase não há legumes e verduras – só couve. Os mineiros se especializaram em couve e se ela não ficar brilhante na travessa, é porque ainda não está no ponto.


Terminada a festa, ensacam-se as violas, guardam-se as sanfonas e todos voltam para suas casas. No outro dia é apurar o ouvido para ver onde será a próxima festa – o próximo festeiro já foi escolhido. Assim a vida vai sendo levada neste pedaço de Brasil que teima em continuar sendo Brasil do jeito que ele é e sempre foi.


Colaboração de José Arci de Faria, o Zé Guaribu – morador da Campinha – Alagoa MG.

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